A PEC dos recursos não será solução para o judiciário

O mundo jurídico assiste agora a uma verdadeira campanha patrocinada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, combativo e valoroso defensor do projeto apelidado de PEC dos recursos.

Recentemente, o autor da proposta foi ao Senado Federal, desfilou números e argumentos em defesa da sua posição. Conseguiu, de imediato, atrair a simpatia de alguns parlamentares com o discurso, bem elaborado e sedutor, típico nas pessoas inteligentes, que atribui aos recursos — e, de forma subliminar, aos advogados que os utilizam — a culpa por todas as mazelas do Judiciário, em especial a longa duração dos processos.

O ministro Peluzo afirma que algumas poucas injustiças deverão ser toleradas. É duro ouvir isso de um magistrado, ainda mais quando a realidade revela que as “poucas injustiças” não são tão poucas. Dados revelados no Relatório Estatístico do Superior Tribunal de Justiça, referente ao ano de 2010, revelam que esses casos — de decisões proferidas em desrespeito à legislação federal — são bem numerosos.

Os números desse relatório assustam, pois atestam que, do total de recursos julgados pelo STJ (330.283), 21,32% são providos. Quando se analisa apenas os números dos recursos especiais — que são objeto da famigerada PEC dos Recursos — constata-se que estes, em 2010, foram em número de 69.797, dos quais 39,37% foram providos.

Se aprovada essa PEC, as decisões acima, mais de um terço do total, irão se tornar “definitivas” e poderão ser, de imediato, objeto de execução. Isso significa dizer que de cada dez dessas decisões, quatro serão executadas, mesmo tendo sido proferidas de forma contrária a normas de lei federal.

Num país sério isso é inadmissível. Quanto aos números no Supremo Tribunal Federal, existe uma controvérsia, ou melhor, uma incógnita. Isso porque o ministro Peluso afirmou que apenas uma pequena parte dos recursos que aportam ao STF é provida. Porém, numa outra ocasião (ADPF 144), o ministro Ricardo Lewandowsky afirmou em seu voto que quase um terço dos recursos criminais apreciados pelo STF era provido, no todo ou em parte.

O que se sabe do STF, segundo dados do estudo “Supremo em Números” divulgado pela FGV, é que o seu grande cliente, quando se trata de competência recursal, é a administração pública.

Segundo esse estudo, a análise dos litigantes com mais de mil processos no STF revela que quase 90% dos processos têm a administração pública como parte. Chega a ser engraçado, se não fosse trágico, constatar que a administração pública, que deve pautar sua atuação pela obediência ao principio da legalidade, é a maior cliente do STF. Essa sim é a origem de um dos grandes problemas do Judiciário.

O recurso é uma manifestação de vontade da parte, vencida no processo, que busca, em uma outra instância, a reforma de uma decisão que lhe foi desfavorável. No Brasil, como regra, da sentença cabe apenas um único recurso. As decisões interlocutórias — aquelas proferidas no processo, solucionando inúmeras questões incidentes, — também podem ser combatidas por um único recurso.

No que toca aos Tribunais Superiores (STF e STJ) estes têm sua competência, originária e recursal, definida pela Constituição Federal (arts. 102 e 105). A Carta Magna prevê a possibilidade de interposição de recurso extraordinário e especial em hipóteses restritas e excepcionais. Ou seja, nem todas as decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça ou pelos Tribunais Regionais Federais poderão ser levadas a reexame das Cortes Superiores.

Pois bem, fixados esses pontos, resta saber: no Brasil existem muitos recursos? A resposta é: não. A realidade é que os problemas do Judiciário são outros. Os gargalos do sistema, em sua maior parte, estão localizados na primeira instância. É lá que proliferam as decisões interlocutórias e escasseiam as sentenças proferidas em um prazo razoável. Por coincidência, é na primeira instância que são realizados os menores investimentos do Poder Judiciário e, por consequência, é ali que se encontra a pior estrutura de suporte à atividade judicial.

Aos Tribunais Superiores (STF e STJ) a Constituição Federal atribuiu a função de zelar pela correta aplicação das normas constitucionais e pela uniformidade da interpretação da lei federal.

E não se fale na existência de três ou quatro graus de jurisdição. Os recursos aos Tribunais Superiores somente podem ser interpostos nas hipóteses previstas na Constituição. Se existe abuso na utilização dos recursos, que seja punido. A lei contém instrumentos para tanto. O nosso sistema recursal tem problemas, sim. Porém, matar o doente não é a cura.

É contrária à Constituição Federal — e também ao bom senso — a proposta de se privar da parte o direito à utilização dos recursos especiais e extraordinários. É a Constituição que assegura, como direito fundamental, a ampla defesa, o contraditório e os meios e recursos a ela inerentes.

Felizmente vozes sábias têm se levantado contrariamente a essa proposta. Dentre estas, merece destaque o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Porém, não são apenas os advogados que acham a mudança proposta descabida. Alguns ministros como Marco Aurélio (do STF) e, recentemente, Napoleão Nunes Maia (do STJ) também se posicionaram como adversários da mudança proposta, sendo que este último foi preciso ao afirmar que “hoje quem fala mal de recursos é aplaudido, mas a verdade é que eles existem para combater os abusos. Não são os recursos que devem ser diminuídos, e sim as ilegalidades.”

A proposta ora em debate lembra a velha piada do marido traído, que cansado da infidelidade da esposa, resolveu vender o sofá em cima do qual a traição ocorria. Espera-se que a sociedade promova um debate maduro sobre o assunto, com base em argumentos racionais, em dados verdadeiros, sem apelos emocionais.

José Guilherme Carvalho Zagallo e Ulisses César Martins de Sousa são conselheiros federais da Ordem dos Advogados do Brasil.