Artigo: O Brasil está vivendo um relacionamento abusivo consigo mesmo, Délio Lins e Silva Jr.

Sempre penso no momento de polarização que vivemos como aquele casal que vive uma relação tóxica e discute todos os dias por qualquer coisa. Não importa o que um diga, o outro vai puxar uma referência lá atrás para ter razão. E o acúmulo de argumentos vai emperrando o diálogo até tornar tudo extremamente complexo e interligado com áreas nervosas e sensíveis de alguém.

O caso da menina de 10 anos que foi estuprada e precisou interromper sua gravidez, poderia – e deveria – ter sido tema de comoção nacional sobre a brutalidade humana, e o país em peso poderia prestar solidariedade às milhares de vítimas desse tipo de barbaridade, iniciando movimentos de vigilância e denúncia, por exemplo. Esse era o óbvio e o simples.

Mas não. Politizaram o assunto e, numa inacreditável reviravolta de valores, o país passou a discutir a legitimidade do aborto, recriando um embate entre religião e política que não poderia ser mais inadequado para o momento.

Tudo pode ser politizado no Brasil de hoje. Acompanho nas redes pessoas que se dizem contra o racismo, mas fazem questão de perturbar quem efetivamente está lutando contra esse problema estrutural; ou o caso estapafúrdio da cloroquina, que era para ter sido discutida exclusivamente no foro científico, mas de uma hora pra outra ganhou posicionamento político próprio.

A politização de tudo chegou a um ponto tal que eu, ultimamente, tenho me dado ao trabalho de explicar – antes de falar em qualquer canto – que estou à frente de uma instituição composta por pessoas com múltiplos pensamentos políticos.

E quando me perguntam como fazemos para nos manter integrados, eu respondo: estamos ocupados demais com nossas tarefas para perdermos tempo com brigas. Resolvemos nossos impasses através dos mais básicos recursos do processo democrático: o diálogo objetivo e a lógica.

Délio Lins e Silva Jr., presidente da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF)

Artigo publicado nesta sexta-feira (21/08) pelo blog do Fausto Macedo no Estadão