Criminalistas criticam a justiça penal brasileira


Em mais de três horas de debate, ministros e especialistas reunidos na OAB/DF na noite desta terça-feira (20/8) defenderam a imparcialidade dos magistrados como princípio supremo do processo penal, criticaram o pacote Moro e apontaram como grandes desafios do Direito Penal brasileiro os crimes cibernéticos e a necessidade de se quebrar o paradigma de que endurecer as medidas punitivas reduz a violência.
Em uma palestra para um auditório com cerca de 300 ouvintes, o advogado Aury Lopes Junior defendeu a tese de que na Justiça brasileira “o anormal é tido como normal”. “No Brasil virou moda transformar em normal o anormal funcionamento de instituições”, sentenciou o especialista em Direito desde 1993.
No debate organizado pelas Comissões de Ciências Criminais e de Direito de Defesa da OAB/DF, além da Fundação de Assistência Judiciária, o jurista destacou diferentes situações em que esta anormalidade é observada, como, por exemplo, no papel da acusação no processo, que ele considera distorcido no Brasil. “A carga probatória é do acusador. Se ele alega, ele prova, isso é óbvio, mas não é o que se vê nas sentenças brasileiras. E não vemos porque ainda não compreendemos que a presunção de inocência é fruto de evolução civilizatória”.
Para ele, este aspecto não só é esquecido na prática judiciária como os papéis são confundidos. “Quando se tem um relação quase incestuosa entre quem julga e quem acusa ou entre quem julga e quem defende você mata o processo”, enfatizou o advogado, que concluiu com voto de louvor unânime seu doutorado na Universidade Complutense de Madrid.
“Eu não quero que o juiz desça do seu lugar, nem em direção à acusação e nem em direção à defesa”, insistiu. “Isso é elementar no sistema acusatório. E não interessam as boas intenções”, disse ele, que defendeu a imparcialidade como a categoria criada pelo processo para gerar este afastamento do juiz. “Até a estética das salas de audiência brasileiras prejudicam o processo. Você não pode ter um juiz sentado ao lado do Ministério Público. Só no Brasil se faz isso”.

Aury Lopes Junior foi aplaudido de pé
por mais de 300 ouvintes na OAB/DF
Aury Lopes Junior apresentou o modelo do sistema jurídico chileno para mostrar o atraso do processo penal brasileiro. “O sistema chileno está sustentado numa cultura de audiências. Todo o sistema funciona para se fazer audiência e a taxa média de demora entre o ingresso e o recursos de apelação é de 11 dias. No Brasil, todo o sistema funciona para não se fazer audiência. Esse é o problema. Somos o país mais atrasado da América Latina”, concluiu.
O especialista também criticou o fato de que no Brasil os juízes investigam o caso, definem meandros e ações da investigação para depois também julgarem o réu. “Na estrutura de hoje, o juiz cabeceia, cruza a área e é goleiro”, disse. “Pré juízo gera prejuízo. O juiz que entrou na fase pré-processual não pode ser o mesmo do processo”, disse. Para ele, “nossa crise de jurisdição começa porque o juiz é colocado num lugar que não é seu”. “E a culpa é do Código, que é de 1940 e inspirado no Código italiano do período do fascismo”.
Outro aspecto pernicioso, como chamou, é a entrada do inquérito policial nos processos. “Inquérito não tem que entrar em processo. É mero ato de investigação. Sempre que o juiz tem de chamar o inquérito para justificar uma decisão está dizendo nas entrelinhas que prova no processo em contraditório não tem. Nós normalizamos o anormal”.
Para ele, o pacote Moro, apresentado pelo Executivo ao Congresso Nacional, representa um retrocesso para um sistema que já é “medieval”. “Se adotarmos o pacote Moro, matamos o processo penal”, acredita. A principal crítica que faz é quanto ao dispositivo conhecido como ple bargain. “O ple bargain acaba com a produção de provas, dá supremacia para o inquérito preliminar e para a confissão, que passa a ser a regra das provas”, destacou.
Crimes virtuais
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), apontou os crimes cibernéticos, que movimenta cerca de US$ 600 bilhões no mundo, como um dos grandes desafios do Direito Penal atualmente. “Nós não temos armas para combater os ilícitos decorrentes do processo digital. Isso faz com que a discussão seja via cooperação internacional e o Brasil tem se destacado nesta via”, disse.

O ministro do STJ considera os crimes
cibernéticos
um dos maiores desafios
do Direito Penal na atualidade

Para o magistrado, “o fenômeno da globalização fez com que países ao redor do globo agissem de forma coordenada e cooperativa a fim de alcançar resultados efetivos na prevenção e na repressão de crimes de natureza transacional, entre os quais citou o terrorismo internacional, a elisão de tributos em paraísos fiscais, a lavagem de dinheiro, o tráfico internacional de drogas e de armas, a criminalidade do “colarinho branco” e o abuso de meninas e meninos por meio da pornografia online.
“A cooperação jurídica internacional é elemento essencial para fazer frente às ameaças cada vez maiores do cibercrime”, disse o ministro, que resgatou o clássico romance de Júlio Verne “A volta ao mundo em 80 dias” para mostrar como a globalização reduziu a um clique a distância entre países.
Minimalismo penal
Doutora em Direito Penal pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP), Alice Bianchini falou sobre política criminal e se propôs a demonstrar que o punitivismo não reduz a violência. “Temos três grandes movimentos de política criminal. Os punitivistas defendem que a solução para resolver os problemas da violência passa por mais direito penal. Os minimalistas, ao contrário, acreditam que a saída passa por menos direito penal. Em outra frente, os abolicionistas pregam que o direito penal é um mal que deve ser evitado”, explicou.

Para Alicia Bianchini, é preciso fazer política
criminal com base em informações científicas
Segundo ela, a criminologia, que é o estudo das causas do comportamento antissocial do homem, com base na psicologia e na sociologia, não considera o punitivismo nem o abolicionismo como eficazes na diminuição da violência.
Alice Bianchini apontou também que a Constituição Federal de 1988 e o Direito Internacional dos Direitos Humanos só identificam o minimalismo penal como solução para a violência. “Eis aí o contraditório. Analisando nossa legislação de 1940 a março de 2015, identificamos 156 reformas penais, basicamente todas punitivistas. Ou seja, nosso legislador aposta no punitivismo como solução para o problema da violência. E não é só o legislador. É o Judiciário, o Ministério Público, os policiais e delegados e a sociedade. Como resolver este paradoxo?”, indagou.
Para a especialista, “está sendo deixado de lado aquilo que está sendo desenvolvido na academia, que está sendo objeto de debates, estudos e análises. “Estamos fazendo política criminal a partir de um sentimento. Precisamos pensar políticas viáveis com base na informação científica”, disse.