Em toda última semana de março volta à memória nacional o golpe militar de 1964. O debate, por envolver uma disputa de narrativas ideológicas, merece sempre um necessário momento de reflexão. Torna-se ainda mais propício para uma análise retrospectiva quando o governo brasileiro, por meio de seu representante maior, anuncia a intenção de celebrar o dia de inauguração do regime que rompeu o processo democrático e trouxe sequelas gravíssimas para o país. Para tanto, é de se indagar: há algo a ser “comemorado” ou “celebrado” no famigerado 31 de março de 1964?
Seria crível se olharmos para trás e celebrar um fato que inaugurou um período de repressão, perseguição, desaparecimento e tortura de todos aqueles que se opunham ao sistema? É importante deixar claro que as mais de duas décadas de ditadura se traduziram em um gradativo recrudescimento da opressão estatal frente às liberdades individuais, bem como trouxeram inúmeros ataques a direitos civis e políticos. Esse é o ponto a ser analisado.
Para respondermos a questão posta, faz-se necessário deixarmos de lado os radicalismos e posicionamentos extremos; as emoções políticas; a escalada da intolerância que teima em polarizar o país, sobretudo após as duas últimas eleições.
Os fatos são inegáveis e falam por si. Merecem destaque os números apresentados pelo relatório do “Projeto Brasil: Nunca Mais”. Há indícios de mais de 400 desaparecidos políticos; 1.843 pessoas fizeram 6.016 denúncias contra violações de direitos humanos, sendo 4.918 contra homens e 1.098 contra mulheres.
Instituições democráticas foram invadidas durante o período, a exemplo da OAB do Distrito Federal. Sob a presidência do saudoso Mauricio Correa, valorosos advogados desta seccional resistiram e impediram que se calasse a voz da advocacia – episódio registrado em fotos históricas imortalizadas nas paredes do quarto andar de sua sede do prédio da Ordem.
E não foi só. Lado a lado com o Conselho Federal, a OAB/DF reverberou o clamor social por liberdade, expressando o seu sentimento de indignação da sociedade civil ao mesmo tempo em que pleiteava, veementemente, o pronto restabelecimento da democracia. Além de se insurgir do ponto de vista político, a Ordem se posicionou juridicamente contra os atos editados pelo regime militar.
Exercer o papel de trincheira da liberdade, porém, teve seu custo. Atuando na causa dos perseguidos pelo regime, o preço pago por vários advogados e advogadas foi o de serem também alvo dos perseguidores.Por isso, é triste pensar em qualquer celebração que simplesmente ignora que o próprio Estado já admitiu sua culpa – por meio de milhares de pessoas que foram anistiadas e até ressarcidas por prejuízos acarretados pelo regime. É isso: a União admitiu os erros do passado e vem tentando minimizar as consequências dos mesmos pagando por eles.
Portanto, finalmente, há algo a ser “comemorado” ou “celebrado” no famigerado 31 de março de 1964? A resposta óbvia é não. Mas é preciso ficar no imaginário da sociedade brasileira que o 31 de março de 1964 deve servir para sempre ser alvo de profundas reflexões. Principalmente para entendermos a importância de se viver num Estado Democrático de Direito. Ele pode ser embrionário e com defeitos que precisam ser corrigidos, mas é amigo da liberdade e do pleno exercício de suas expressões. A ferida permanece aberta e, ao contrário do que digam, não será cicatrizada e nem precisa ser.
A histórica posição de vanguarda contra os ataques à integridade, paz, tranquilidade e, sobretudo, à liberdade dos brasileiros deve ser sempre defendida de forma intransigente – com espírito altivo e vigilante.
No momento em que a sociedade brasileira é incitada a comemorar um período que deixou o Brasil refém da tirania, espera-se que os brasileiros, todos eles, sejam porta-vozes e guardiões da Constituição Federal de 1988, carta política garantidora de que todas as disputas políticas sejam dirimidas na base do diálogo e do debate de ideias, tendo ela como principal ideologia. Não se faz um país digno e respeitável sem democracia e garantia total e irrestrita às liberdades individuais. É por meio delas que chegaremos a um Brasil mais justo e igualitário.
Délio Lins e Silva Junior
Presidente da OAB-DF
*Artigo publicado no Correio Braziliense em 31 de março de 2019