Confira artigo da presidente da OAB-DF, Estefânia Viveiros, publicado no último sábado (4), no Jornal de Brasília: Justiça ao vivo Salvo algum problema de ordem técnica ou econômica, a TV Justiça deverá transmitir, a partir de segunda-feira, ao vivo, as sessões de julgamento de Suzane von Richthofen e dos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos. Com toda publicidade que o caso recebeu, será um fenômeno de audiência para uma emissora que se esforça em romper o hermetismo do juridiquês falado nos tribunais e tornar a Justiça mais compreensível aos olhos e ouvidos do público leigo. Desde que confessou participação no assassinato de seus pais Manfred e Marísia von Richthofen, a personalidade de Suzane tem sido esmiuçada em todos os seus ângulos, seja pela frieza como planejou e executou o crime, como pelas circunstâncias que levam jovens de classe média a extremos assim. Mas, afora a tragédia em si, a opinião pública também não entendeu as decisões judiciais permitindo que Suzane aguardasse o julgamento em liberdade – tal como ocorreu com o jornalista Pimenta Neves. Os advogados, sobretudo, recebem uma carga pesada de impropérios. Quando, por exemplo, um cidadão abastado é beneficiado por um habeas corpus para responder em liberdade ao processo no qual é tido como suspeito, e, ao mesmo tempo, um pobre coitado leva pancada da polícia por furtar galinhas, fica mais fácil concluir que o primeiro pôde contratar um advogado e o segundo, não. As injustiças permeiam a história de nosso País, a começar pelo julgamento de Tiradentes, daí porque durante muito tempo ainda uma discussão racional sobre o tema tende a ser prejudicada pela derrisória afirmação segundo a qual cadeia foi feita só para pobres (evito, aqui, fazer menção à voz corrente a esse respeito). Logo, antes de se questionar o habeas, mais lógico seria perguntar se o sujeito devia mesmo ser preso. É nesse ponto que a comoção toma o lugar da razão. Abro aqui um parêntese para afirmar que prefiro a utopia de um mundo sem cadeias, e talvez um dia ainda falemos delas como excrescências de uma sociedade que, incapaz de resolver seus problemas, varria a sujeira para debaixo do tapete, com suas prisões e hospícios. Foucault por aí… De modo prático, entretanto, não deixo perder de vista algumas observações do nosso mestre em Direito Penal, Evandro Lins e Silva (1912-2002). Ele não conseguia imaginar como um jovem, em sã consciência, pudesse cair na teia marginalidade se não fosse pressionado pela falta de perspectiva de futuro. Na visão profundamente humanista de Evandro, jogar jovens no sistema penitenciário é como matriculá-los em “escolas de crueldade, maldade, perversidade e insensatez.”. Já para os crimes do colarinho branco, perguntava o criminalista, adianta trancafiar o grã-fino? Ele tinha um remédio: torná-lo pobre. Fecho o parêntese. Ocorre que a desinformação em torno de questões jurídicas aparentemente simples é gritante. Por exemplo: todo réu tem direito a advogado. Por mais ignóbil que tenha sido o crime, o direito à defesa lhe é assegurado. É um imperativo legal: o Código de Processo Penal diz que ninguém será processado sem defesa, e a Constituição estabelece a figura do defensor dativo para quem não pode constituir advogado. Há processos, acredito mesmo, que o advogado nem desejaria defender, mas tem de fazê-lo. Pense no médico do pronto-socorro que de repente recebe um criminoso gravemente ferido. Ele deve simplesmente virar as costas, não salvar-lhe a vida? O direito à defesa, ensinam os grandes mestres criminalistas, está acima da reprovação do crime. É uma garantia decorrente da própria evolução do Estado. E por que isso acontece? Porque o Estado reconhece que ele, sozinho, não é capaz de promover um julgamento justo. Não teria a isenção que se requer. Não pretendo, é lógico, ignorar as mazelas do sistema, mas o Estado democrático de Direito definido a partir da Constituição de 1988 mostrou aos cidadãos e cidadãs que as portas da Justiça estão abertas. Entretanto, se um processo demora mais de uma década para ser julgado, ou se magistrados reclamam porque estão abarrotados de trabalho, esta é outra história – aliás, um problema muito sério, que precisa ser enfrentado. Trata-se de aparelhar adequadamente a Justiça para atender as demandas de uma sociedade cada vez mais complexa. Ipso facto, a transmissão do julgamento poderá vir a ser mesmo um evento com repercussão positiva para todo o Judiciário, dado o seu caráter pedagógico. Menos pelo drama que ali vai se desenrolar e mais pelo que podemos aprender acerca da sociedade em que vivemos e da Justiça que queremos.