Quatro renomados constitucionalistas brasileiros – Celso Antonio Bandeira de Mello, Fábio Konder Comparato, José Afonso da Silva e Paulo Bonavides – sustentaram nesta quarta-feira (12) que não há prescrição para os crimes de tortura cometidos no Brasil durante a ditadura militar (1964-1985). Os juristas, que participam da 20º Conferência Nacional dos Advogados, endossaram a ação de descumprimento por preceito fundamental (ADPF n° 153) da OAB que pede a punição do crime dos torturadores, destacando dois motivos: tortura não é crime político e ninguém pode se auto-anistiar. Os constitucionalistas, reunidos em Natal, disseram que se a punição para aqueles crimes não for aprovada no governo Lula, eles recorrerão à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Segundo eles, o tribunal internacional tem precedentes aprovados nesse campo, “para fazer valer no Brasil o princípio de que o crime de tortura é de lesa-humanidade e, portanto, imprescritível”. A seguir, a íntegra das manifestações dos constitucionalistas: Celso Antonio Bandeira de Mello: O Brasil não entrará no conserto dos países civilizados de verdade, se ele não responsabilizar os torturadores. Não há prescrição nenhuma para crime de lesa-humanidade. O que houve foi prescrição para crimes políticos. A tortura é um ato monstruoso. A imagem que eu faço mentalmente é que o torturador é um demônio disfarçado de ser humano. Temos que duramente responsabilizar essas pessoas que torturaram e mataram porque só assim a sociedade brasileira vai se convencer de que atos dessa indignidade não podem ser reproduzidos nunca mais. Se eles ficam impunes, podemos conviver com o inimigo sem saber. Esse homem se senta ao nosso lado, fala conosco, apertamos-lhes a mão e, na verdade, ele é um monstro, uma fera. Não. Não há prescrição para crimes de lesa-humanidade. O Brasil é signatário de convenções que não admitiriam, em nenhuma hipótese, uma prescrição dessa ordem. Há dois motivos pelos quais não podemos aceitar a idéia de prescrição. Um deles, o mais óbvio, é o fato de que tortura não é crime político. O segundo motivo é que ninguém pode se auto-perdoar. Aquilo foi feito em um momento em que, se houvesse por ventura o perdão ao torturador, aquilo era um ambiente de coação. Portanto, não podemos aceitar isso de jeito algum. Entendo que a OAB agiu brilhantemente e interpretou o sentimento de todo o povo brasileiro e, sobretudo, o sentimento do meio jurídico. Nós não podemos, de maneira nenhuma, confundir um ato de insurgência e de defesa do País contra a tirania com uma tortura. São coisas qualitativamente distintas. Não há possibilidade de comparar. Não aceito, de nenhuma maneira essa posição. Cada um tem direito de emitir o seu posicionamento porque nós vivemos em uma democracia. Ele emitiu o dele, mas eu não concordo, de nenhuma maneira, com esse ponto de vista e também não concordo com a posição da AGU. É preciso que a AGU reveja a sua posição, pois ela não se coaduna com o Estado Democrático de Direito. Fábio Konder Comparato: Acordamos tarde para o problema da Lei de Anistia e o que se quer, agora, é que a mais alta Corte do país julgue definitivamente se aqueles que cometeram atos abomináveis de assassinato, tortura e estupro contra presos políticos podem continuar no anonimato e se eles se beneficiaram de uma anistia que, pela própria estrutura da lei, não podia beneficiá-los. Se o STF entender que a Lei de Anistia abrangeu também os criminosos, militares e policiais, iremos recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos para denunciar o Estado brasileiro. Considero lamentáveis as posições adotadas pela Advocacia-Geral da União e pelo ministro da Defesa e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim. Espero que isso não influencie a Suprema Corte. José Afonso da Silva: Acho que esses crimes devem sempre ser punidos. Eu , quando fui assessor da Assembléia Constituinte (1987-88), não fui a favor de crimes imprescritíveis. O que é preciso é puni-los. A prescrição pressupõe a inércia do poder público. O poder público é que tem que perseguir o criminoso. E se ele não persegue, aí o crime fica imprescritível. O que temos então é que exigir do poder público que ele cumpra a sua função, para que não passe o tempo e não se chegue à prescrição. Mesmo nos crimes comuns as prescrições de dão em prazos longos, de 20 a 30 anos. Então, ainda há muito tempo para se promover a responsabilidade do criminoso. Ora, se o poder público fica inerte, aí fica cômodo.Acho que os que torturaram não foram punidos. Eles estão aí alegando que foram beneficiados pela lei da anistia. Eu tenho um texto publicado em que afirmo que não existe anistia para agentes públicos torturadores. Isso se chama na verdade auto-anistia do poder público, que resolve conferir a anistia aos seus próprios agentes que cometeram o crime. Há uma decisão famosa da Corte Interamericana sobre um também famoso caso acontecido no Peru, chamado caso Bairro Alto, em que os militares metralharam umas doze ou treze pessoas que estavam numa reunião, que os militares alegavam ser uma reunião subversiva. Aí, um promotor moveu uma ação competente contra eles. Mas o Fujimori, que era o presidente, um ditador, conseguiu rapidamente uma lei de anistia para os militares que mataram o grupo. A juíza teve que parar o processo. Houve recurso à Corte Interamericana de Direitos Humanos e ela decidiu que aquilo era auto-anistia e que isso não existe, é contrário aos direitos fundamentais do homem. Paulo Bonavides: O crime de tortura é um dos mais hediondos que fere os direitos naturais da pessoa humana. Não há direito mais sagrado do que a integridade moral e a integridade física do homem em toda a dimensão do princípio superlativo, que é o da dignidade da pessoa humana. O direito à liberdade e à inteireza do ser humano é inviolável. É, logo, um crime imprescritível, pois ofende nas suas raízes o direito natural. Uma sociedade que não se fundamenta no direito natural não é uma sociedade constitucional do ponto de vista da materialidade dos valores éticos, que devem conduzir sempre essa conduta.” Fonte: Conselho Federal