Fonte: Conjur
A forma e a insistência da imprensa ao cobrir um caso criminal podem definir o futuro de um réu — culpado ou inocente. Quando há um conflito de interesses, como o da publicidade do processo versus garantias individuais, nenhum direito é absoluto. É o que afirma a advogada Flávia Rahal ao criticar a publicidade e o sigilo excessivo dos autos. “A publicidade do processo penal precisa ser repensada”, assevera. Para ela, o direito à informação tem limites e não deve ferir garantias e direitos individuais.
No 16° Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que acontece em São Paulo, a advogada palestrou sobre a opressão da publicidade no processo criminal. Acompanhada da juíza federal Simone Schreiber, da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, elas mencionaram julgados que demonstram que direito à informação é tão importante quanto garantir que a defesa de um acusado seja efetiva.
De acordo com Flávia Rahal, o direito à publicidade dos atos processuais surgiu na França, o que significava algo mais amplo: acesso à Justiça e direito de defesa. Em muitos períodos sombrios da sociedade, o réu não tinha direito de defesa. “Na inquisição, os autos eram absolutamente sigilosos”, lembra. “Mas, o que em princípio parecia ter somente pontos positivos se tornou com o passar do tempo tão acusatório quanto a própria inquisição. Hoje, os inquéritos e ações penais abastecem a imprensa com a justificativa de dar transparência à Justiça”, diz.
Ela destaca que casos que ganham as páginas dos jornais e ocupam as inserções na televisão geralmente atrapalham a realização da Justiça. “A mesma Justiça que prende arbitrariamente por pressão pública um acusado, irá mais tarde soltá-lo”, indica. A advogada, em sua exposição, relembrou casos amplamente noticiados que resultaram em espetáculos midiáticos sem se levar em conta os direitos e garantias individuais.
No mais recente deles, o do goleiro Bruno, ela aponta que os jornais tiveram acesso aos depoimentos dos réus antes dos advogados, que precisaram ainda recorrer às instâncias superiores para poderem exercer a defesa. Além disso, vazamentos de vídeos não autorizados pelo réu dentro do avião, quando estava sendo transferido para Minas Gerais, na sala do delegado e ainda dentro da penitenciária são cenas sem qualquer interesse para a sociedade, de acordo com a advogada. “Elas expõe e violam diretos”, completa.
“Mesmo com as delegadas afastadas, outros vazamentos aconteceram”, critica. Ela cita que o artigo 20 do Código de Processo Penal diz que cabe a autoridade policial decretar o sigilo do processo. Dessa forma, ela garante que o responsável é quem quebra o sigilo e não a imprensa que publica. “Quem tem acesso aos autos, deve respeitá-lo”, recomenda.
Flávia Rahal afirma que o sigilo processual deve ter a função de proteger os réus e não cometer irregularidades, como no caso citado, no qual os advogados sabiam por meio da imprensa o que a Polícia alegava. “Nestes casos, o sigilo oprime a defesa”, reforça.
O caso da morte da menina Isabella Nardoni é apontado pela advogada como outro exemplo de cobertura da imprensa que atrapalha a Justiça. “Tvs divulgaram em tempo real a reconstituição do crime, que foi feito em um domingo à tarde. E a sentença condenatória do casal foi lida, com a ajuda de altos falantes, na porta do Fórum e recebida com palmas e fogos pelas pessoas que estavam ali acompanhando de perto o Júri”, comenta.
Não ficou de fora da palestra da advogada o emblemático caso da Escola Base, no qual os donos de uma escola infantil foram acusados pela Polícia de abusarem sexualmente dos alunos. Jornais publicaram inúmeras reportagens com base em depoimentos de mães e afirmações de um delegado. Posteriormente, ficou comprovada a inocência dos acusados. Eles entraram na Justiça e conseguiram indenização contra veículos de comunicação.
“Casos como estes, muito repercutidos pela imprensa, têm consequências catastróficas”, lamenta. “Quando a ação penal vai para as páginas dos jornais há um pré-julgamento e um veredicto é estabelecido previamente”, diz. Para ela, o caso se assemelha a uma pintura que mostra uma execução em praça pública diante de pessoas que clamam por Justiça. Ainda sobre o Júri Nardoni, ela ressalta que pessoas que eram favoráveis ao casal foram retiradas da porta do Fórum, como o pastor que pedia o perdão dos réus.
Flávia Rahal afirma que um juiz não pode se deixar levar pelo clamor social para decidir. “As pessoas extravasam o rancor que é delas”, citando o ministro Cezar Peluso do Supremo Tribunal Federal, a advogada ressalta que uma notícia condena rapidamente um acusado.
Questão de imparcialidade
A campanha midiática pela condenação de um réu já levou a Suprema corte americana a anular julgamentos, como afirma a juíza federal Simone Schreiber. Mesmo sem critérios objetivos que indiquem a imparcialidade de jurados, em um caso de homicídio de grande comoção nacional em 1961, a corte entendeu que eles tendiam a condenar o réu antes mesmo do julgamento. “Lá, os jurados são questionados antes sobre sua opinião, e oito dos doze disseram que ele era culpado”, explica.
Outro recurso que pode ser utilizado é a transferência do julgamento para outra cidade que não esteja contaminada com o clamor, como em um processo de 1962. Como a veiculação da mídia tinha sido muito explorada, a corte aceitou o desaforamento para outro Estado. A Polícia divulgou um vídeo no qual o acusado não sabia que estava sendo gravado.
Outras irregularidades também podem levar a nulidade do julgamento. No processo em que um médico era acusado de matar sua mulher grávida o julgamento foi anulado após várias irregularidades constatadas. Entre elas, o vazamento da lista dos nomes dos jurados escolhidos. “Eles receberam cartas pedindo a condenação do réu”, indica.
Atualmente, a Justiça americana adota alguns procedimentos para garantir a lisura do processo. Em caso de comoção nacional, a lei estabelece que o réu deve ser preservado. Além disso, outras medidas visam assegurar a imparcialidade do Júri. O desaforamento e adiamento podem impedir o envolvimento prévio dos jurados sobre um determinado réu.
Polêmica, mas também utilizada, é a proibição de que pessoas envolvidas no caso falem com a imprensa próximo da data do julgamento. De acordo com a juíza, essa medida levanta críticas de que ela atenta contra a liberdade de expressão, direito garantido na Constituição.
Cuidados como a incomunicabilidade de jurados já são adotados pela Justiça brasileira, mas isso pode não ser suficiente. No Júri do casal Nardoni, por exemplo, os gritos de populares que pediam a condenação dos réus podiam ser ouvidos de dentro da sala de julgamento. Mas o assunto não é discutido em nenhuma jurisprudência no Brasil.
Segundo a juíza, o Supremo Tribunal Federal tem julgados que ressaltam a liberdade de expressão, porém, afirmam que ela não absoluta diante de outros direitos. Na Petição 27.027 no STF, Anthony Garotinho sustenta que foi alvo de grampos que estavam sendo divulgados pela imprensa. Para o ministro Sepúlveda Pertence, no caso, a liberdade de expressão não poderia se sobrepor ao direito individual do político.
No Habeas Corpus 82.424, um homem foi condenado por racismo ao produzir materiais editoriais de ódio contra os judeus. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, que tratava da Lei de Imprensa, o entendimento foi o mesmo. Também foi negada a Reclamação 9.428, do jornal O Estado de S. Paulo, que questionava a decisão judicial que o proibiu de divulgar qualquer informação sobre uma operação da Polícia Federal que investigava o filho de José Sarney, Fernando Sarney.
Liberdade de expressão com limites
Para a juíza Simone, a verdade jornalística não é mediada, a investigação não se sujeita a regras e, consequentemente, há a imprestabilidade de provas produzidas pela imprensa, como o uso de câmeras escondidas. “Ela não foi produzida dentro do devido processo legal”, endossa.
“O interesse da imprensa pelo fato criminal é legitimo, e faz parte da manifestação da liberdade de expressão, mas é preciso se atentar para o efeito judicial de uma campanha midiática”, observa. Ela aponta ainda que essa campanha já tem punição na Corte Européia de Direitos Humanos, contra um jornalista austríaco porque tentou influenciar um julgamento criminal de um político acusado de corrupção. “Ele foi condenado a pagar uma multa”, explica.
No caso, ela destaca que não é possível afirmar com segurança se as reportagens prejudicaram o julgamento, mas sim, avaliar a potencialidade delas.