A paralisação aconteceu depois de os conselheiros terem a notícia de que, em 59 ações populares ajuizadas pelo ex-procurador da Fazenda Renato Chagas Rangel contra decisões do Carf favoráveis a contribuintes, a Procuradoria da Fazenda Nacional deu parecer ao mesmo tempo a favor do Carf e contra os acórdãos do conselho.
Conforme mostrou reportagem da revista Consultor Jurídico publicada na noite desta terça, a Fazenda se manifestou em alguns casos julgados, como nos da Petrobras, da Vivo e do Santander. Disse, em parecer, defender os interesses da União. Mas, como o interesse público da União é o crédito tributário, a Procuradoria se opôs ao que fora decidido pelo Carf quando dera razão às empresas. São dezenas de outras companhias envolvidas, como Gerdau; Itaú; Bradesco; Light; Oi; e Braskem, entre outras.
Por telefone, o presidente o Carf, Otacílio Dantas Cartaxo, mostrou surpresa com a situação. “São dezenas de ações iguais, todas pedindo a reforma do mérito de decisões do Carf. Mas nenhuma delas faz qualquer acusação ao Carf ou aos seus conselheiros. Só afirmam que o entendimento da Procuradoria é que estava correto, e por isso a Justiça deveria reformá-las. É inacreditável”, disse.
A insegurança é tanta que o Carf encomendou pareceres a alguns renomados professores de Direito Tributário para discutir a questão. Entre eles estão Ives Gandra da Silva Martins, da Universidade Presbiteriana Mackenzie;Eurico de Santi, da Fundação Getúlio Vargas; e Paulo de Barros Carvalho, da PUC de São Paulo e do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Todos ofereceram o serviço gratuitamente.
Segurança jurídica
“São ações que não têm substância nenhuma, mas que atacam a honorabilidade do Carf e de seus conselheiros. E isso é muito ruim para a própria instituição, já que o órgão é formado por membros da Receita e representantes dos contribuintes”, avalia. E mostra preocupação: “Por que um professor, ou advogado de renome, se sujeitaria a trabalhar de graça como conselheiro se está sujeito a uma ação popular que questiona sua higidez, sua idoneidade?”
Paulo de Barros concorda. Ele afirma que as ações são “completamente sem propósito”. “Entrar com a ação popular é possível, é um direito de todo mundo. Mas a Fazenda subscrever essa atitude é um atentado à segurança jurídica e à estabilidade do governo, além de ir completamente contra o Código Tributário Nacional”, diz. Segundo o tributarista, o CTN estabelece que, depois de decisão favorável ao contribuinte no Carf, o crédito tributário fica extinto. “O que parece é que a Fazenda quer ganhar todas.”
Na opinião do professor Eurico de Santi, o episódio pode ser virtuoso para o Carf, apesar das turbulências. Reforçaria, segundo ele, o papel e a importância institucionais do órgão, que é quem dá a última palavra administrativa sobre a existência ou não de crédito tributário. “É um órgão sério e com a expertise para tratar de crédito tributário.”
Sobre as ações populares, Santi entende que, hipoteticamente, é cabido postular ação popular. Mas só se for alegada alguma ilegalidade ou indícios que possam contaminar os julgamentos. O problema dessas ações, diz o professor, é que elas pretendem rediscutir o mérito das decisões do Carf. “Não tem o menor sentido. É como se eu pedisse para a Justiça rediscutir um assunto, chamando-o de injusto, porque o meu argumento não foi aceito. Esse ex-procurador quer levar ao Judiciário argumentos de mérito.”
Contradição institucional
O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, disse à ConJur que considera as ações populares “improcedentes e desnecessárias”. Afirmou que “é papel da AGU defender os órgãos públicos federais em juízo”, e garantiu que a AGU vai defender o Carf e seus conselheiros. “É óbvio que o Judiciário não vai acolher essas ações.”
Institucionalmente, esse é o papel da PGFN: defender as decisões do Carf, já que o órgão faz parte do Ministério da Fazenda. Em última análise, o Carf é o Ministério da Fazenda. Só que, nas ações, por meio de pareceres, a Procuradoria da Fazenda se mostrou contrária aos posicionamentos do Carf. Oficialmente, a PGFN ainda não se posicionou.
Sem saber que a AGU assumiria a defesa do caso, a Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal entrou, nesta quarta-feira (6/2), com representação no órgão pedindo o “restabelecimento da credibilidade e garantia da legitimidade do Carf”. A seccional estuda instaurar processo ético-disciplinar contra o ex-procurador Renato Rangel, pois há declarações dadas por ele que estão sob suspeita de falsidade ideológica.
“Não vamos investigá-lo por ter entrado com ações contra o Carf. Isso é um direito. Mas vamos investigá-lo porque ele afirmou não responder a qualquer ação penal, sendo que, segundo consta, ele é investigado por valer-se de cargo público em benefício pessoal”, disse o conselheiro seccional Manoel Coelho Arruda Junior ao site da OAB-DF.
O Movimento de Defesa da Advocacia também está atento ao caso. O presidente, Marcelo Knopfelmacher disse àConJur ter estudado, a pedidos, oficiar a AGU para defender os conselheiros, até saber, pela reportagem, que o órgão assumiu a tarefa.
Terceira instância Luís Eduardo Schoueri, professor titular da USP, afirma que, caso as ações tenham sucesso, “toda a segurança jurídica da atuação administrativa desaparece”.
Ele explica que o Carf não é um órgão independente, já que faz parte da administração pública federal. Segundo ele, tanto o fiscal quanto o Carf falam pela Fazenda Nacional. “Como posso pensar que a Fazenda se mostrou contrária a uma decisão do próprio Ministério da Fazenda? A administração pública é uma coisa só”, diz.
Eurico de Santi também ficou assustado com a postura do Procuradoria da Fazenda Nacional nos processos. “A Fazenda, em vez de defender o Carf, decidiu entrar no mérito e agir como parte, reafirmando os próprios argumentos. Isso é grave”, diz. “A Procuradoria faz parte desse jogo. Ela já participou, já teve seus argumentos ouvidos, mas perdeu no processamento convencional dos casos. E ela não entrou com nenhum recurso ou ação judicial na época das decisões. É a Fazenda usando o Judiciário como nova instância recursal.”
O mesmo pensa o tributarista Heleno Taveira Torres, também professor da USP. Ele afirma que “a ordem jurídica não pode servir de instrumento para interesses de vingança privada”. Para ele, interessa à sociedade e ao próprio governo repudiar essas ações. “Está em jogo a credibilidade do Carf como tribunal administrativo independente.”
Para o advogado Luiz Gustavo Bichara, é preciso avaliar as consequências econômicas de se ter o Carf parado. “Com as sessões do Carf suspensas, centenas de processos deixaram de ser julgados e milhões de reais tiveram sua arrecadação postergada”, diz.
Ele afirma que o ex-procurador Renato Rangel promove uma “aventura processual”. “Parece querer fazer do Judiciário um parque de diversões processuais às custas de toda a sociedade. É o Robin Hood da arrecadação.”
Bichara também ficou impressionado com a postura dúbia da PGFN, sob alegação de defender a arrecadação. “Tal postura é abominável”, afirma. Segundo ele, a intenção é “descredenciar e deslegitimar as funções institucionais do Carf e ignorar a existência do contribuinte de boa-fé, que acredita nos atos da administração pública”.
O advogado Gilberto Fraga, vice-presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB do Rio de Janeiro, vai além. Ele afirma que o Judiciário não pode se debruçar sobre o tema, sob pena de abrir o precedente de que, a qualquer decisão pró-contribuinte do Carf, caiba uma ação popular. “Imagine como ficaria o Carf se a todo momento em que desse razão ao contribuinte soubesse que seria alvo de ação. Essas ações são uma maneira enviesada de ressuscitar o crédito tributário, quando o STJ já decidiu que a decisão administrativa, quando contra a Fazenda, é definitiva”, afirma.